Por EDUARDO MUYLAERT
“Voleva lasciarlo e lui l'ha uccisa. Convivevano forzatamente per le restrizioni Covid. La donna trovata in casa. Uccisa da un colpo d'arma da fuoco. Nessuno dei due risultava contagiato” (Corrieri della Sera, 20 de Abril de 2020, 12h26) Chefe, chegou um despacho da agência Ansi, de Milão, bem agora na hora do almoço. O fato, em si, não tem nenhuma importância, mas pode dar matéria. Foi na Lombardia, numa cidadezinha. O cara matou a mulher que queria largar dele. Tiro de fuzil em pleno rosto, calibre 12. Estavam convivendo só por causa da pandemia. Crime passional sempre vende jornal. Mando bala? Ouçamos a sabedoria do grande mestre Roland Barthes, que sempre nos ilumina: “O assassinato político é pois, sempre, por definição, uma informação parcial; o fait divers, pelo contrário, é uma informação total, ou mais exatamente, imanente; ele contém em si todo seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete formalmente a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, a sua história, a sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos; (...) no nível da leitura, tudo é dado num fait divers; suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seu desenlace...”. Senhor Giovanni, posso chamá-lo assim, quando recebi a carta da Alessandra, a tragédia já tinha acontecido, foi na noite de domingo, o dia da solidão. Ela postou no dia 15, vi pelo carimbo do correio, era quarta-feira. Ela me disse que temia o pior, que não aguentava mais. Imagina que o maldito Antônio era guarda-caça, membro da guarda voluntária venatória, gente que tem que ter ótima conduta para não perder o posto. A vantagem é que ele ficava quase o tempo todo no campo, em Bressanone, sabe, ali na província de Bolzano, assim Alessandra, coitada, podia relaxar um pouco. Os dois tinham a mesma idade, 47. Alessandra era da Sicília, como ele, mas morava aqui há muito tempo, éramos amigas, já era quase daqui, mas, no fundo, sabe como são esses sicilianos. O namoro começou há nove anos, quando se encontraram em Milão; eram outros tempos, as pessoas ainda podiam andar na rua e frequentar bares e festas, não tinham nem 40 anos. A vida é assim, nem sempre dá certo. Mas, como eu dizia, Alessandra não aguentava mais o desgraçado e falou que estava vendo a hora de rachar a cabeça dele, força de expressão, claro, pois acho que, apesar de siciliana, ela nunca fez mal a ninguém. Quando soube da notícia, não acreditei. Nunca pensei que Antônio pudesse fazer uma coisa dessas. Não se aguentavam, mas chegar a esse ponto, minha Nossa Senhora. O Grupo de Investigação Científica é o foco da série R.I.S., da RAI, inspirada na norte-americana CSI. As funções desses carabineiros são semelhantes às da Gendarmerie francesa, ou da Polícia Militar, no Brasil, mas com maior poder de investigação. É equivocado dizer que o lema da tropa - Nei secoli fedele - foi criado pelo grande Gabriele d'Annunzio, como muitos repetem. A presença desses policiais é comum nas ruas na Itália, mas também na literatura e no cinema. Os carabineiros que me perdoem, mas a série do comissário Montalbano é muito melhor. Antonio Vena, 47, se apresentou nesta caserna de polícia de Cassano d’Adda, província de Milão, na madrugada de 19 para 20 de abril. Aparentemente sóbrio e um pouco emocionado, relatou que acabara de matar a esposa, Alessandra Cità, e que se apresentava espontaneamente para responder pelo crime. Explicou que tinha motivo justo, pois conviviam há quase dez anos, embora meio afastados nos últimos tempos, ele exercendo suas funções de guarda-caça em Bressanone, província de Bolzano. Alias preferia mesmo ficar nos bosques, preservando a flora e a fauna, sem mulher para encher o saco. Face à emergência da recente epidemia de corona vírus, Alessandra teve que hospedá-lo, em função das normas de confinamento. Garante que nenhum dos dois estava contaminado. A mulher, entretanto, passou a atormentá-lo, dizendo que queria a separação definitiva, que não aguentava mais a sua companhia, nunca deixava ele ver o que queria na televisão, sempre a droga das novelas. Antônio informou que era pacífico, como demonstra sua função de polícia florestal e da natureza, impedindo que os predadores ajam sem respeito, já advertiu muitos caçadores que agem fora de época ou que fazem fogo no meio do mato, segundo ele gente que não presta. Foi ouvido nesta manhã de 20 de abril de 2020, por cerca de quatro horas e meia, mas não apresentou nenhuma explicação mais consistente. Anteriormente, acompanhado dos policiais militares abaixo identificados, fui ao local do crime, onde fizemos a constatação que está no laudo anexo. Em plena cozinha, imerso numa poça de sangue, havia o corpo, não muito grande, de uma mulher de cerca de 50 anos, toda vestida de preto, com o crânio esfacelado. Sobre a mesa, restos de sopa, pão, salame e um fuzil calibre 12, aparentando uso recente. E eu, Giovanni Tarzia, para constar, lavro este termo, do qual dou fé. Então, Chefe, não se animou? Que merda, a matéria vai para o lixo? E eu que fui buscar meu dicionário de italiano, e até lembrei do Roland Barthes, que eu não via desde a faculdade. Vamos falar de novo do número de mortes no Brasil. Estatísticas, é isso. Números e mais números. Quanto hoje, tanto por cento. E daí? Não há mais espaço para poesia nesses tempos mórbidos?
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